Infelizmente, os fatos citados abaixo acontecem com muita freqüência e muitas vezes, entre pessoas conhecidas e até entre parceiros de trabalho.
Numa tarde de sexta-feira, recebi um telefonema de um amigo me convidandopara ir a um churrasco na sua casa. Acontece que na naquela noite eu tinha
que dar aula na faculdade. O problema é que eu queria ir ao churrasco, mas
como? Bem, eu agi como, geralmente, todos nós agimos: fiz de conta que estava
cumprindo com a minha obrigação quando, na verdade, satisfiz o meu prazer. O
churrasco começava às oito da noite e a aula às sete e meia. Fui à
faculdade, registrei a aula, fiz a chamada e inventei uma aula de leitura na
biblioteca, abandonando a turma. Saí para o churrasco querendo acreditar que
cumprira meu dever de professor.
No churrasco, fiquei numa mesa com o dono da casa, que é médico, o amigo que
estava sendo homenageado, que é policial, um amigo do homenageado que é
advogado e político e a sua esposa que é universitária e estuda no período
da noite. O assunto era um só: a roubalheira dos nossos políticos e a passividade da sociedade (todos nós) mediante a podridão do episódio do mensalão. Todos
estávamos revoltados e propondo soluções para o melhor funcionamento da
máquina pública e para o resgate da ética entre a classe política.
Num dado momento, o telefone do dono da casa tocou e ele se afastou para
atender. Retornando, disse com raiva: "Não dá pra trabalhar com certas
pessoas". Naquela noite, ele estava de plantão no hospital, mas chegou lá cedo,
visitou alguns pacientes e leu "por cima", os prontuários. Depois foi para
casa e deixou como recomendação: "só me liguem em caso de extrema emergência ou se aparecerem pacientes particulares".
Estava aborrecido porque a enfermeira lhe telefonara só porque chegou um
sexagenário com suspeita de infarto. Ele "receitou" medicamentos pelo
telefone e disse que a enfermeira só devia ligar de novo se acontecesse algo
grave. Para aliviar o clima, perguntei ao amigo que estava sendo homenageado se já havia feito a sua mudança de casa. Ele respondeu que sim e, que isso não
tinha lhe custado nada, pois o dono da transportadora lhe havia retribuído "um favor": meses antes, ele tinha " resolvido" uns probleminhas de multas nos seus carros que poderiam lhe custar a habilitação e, até mesmo, a sua empresa!
Aí, a esposa do político liga para uma colega que também fazia mestrado para
saber se ela tinha respondido à chamada por ela enquanto ela estava no
churrasco, pois ela já estava "pendurada nas faltas" nessa disciplina e não
poderia ser reprovada. E, feliz, sorriu com a resposta da colega: dera tudo
certo. Em um outro momento, o anfitrião pergunta ao político como iria ficar o caso
de uma certa pessoa. E ele respondeu que tudo estava indo bem, o problema
era que na secretaria almejada já havia alguém concursado ocupando o cargo
que tal pessoa pleiteava. Mas que ele não se preocupasse, pois estavam
estudando uma medida legal (?) para transferir o "dito cujo" de função ou de
setor para a vaga "do fulano" ser ocupada por ele. "Ele é um que não pode
ficar de fora, pois foi comprometido com a gente até o fim", finalizou.
Em meio a tudo isso, não deixávamos de falar das CPI's, da corrupção dos
políticos e da cumplicidade da sociedade que, apática, não movia uma palha
para mudar nada. Chegando em casa fui pensar naquela noite e em tudo o que havia presenciado. De repente, me lembrei do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, que diz: "nós vivemos num ambiente de lassitude moral que se estende a todas as camadas da sociedade e que esse negócio de dizer que as elites são corruptas mas que o povo é honesto é conversa fiada. Nós somos um povo de comportamento desonesto de maneira geral, ou pelo menos um comportamento pouco recomendável".
O melhor era que eu não precisava fazer qualquer pesquisa para concordar
como escritor. A sua afirmação estava magistralmente retratada no meu
comportamento e no comportamento dos meus amigos naquela noite e naquele
churrasco que eu havia freqüentado. Para começar, eu, como professor, roubei o povo ao fingir que estava dando aula. E estou surrupiando (roubando) a sociedade quando marco os tão conhecidos seminários só para não dar aulas, com a mentira disfarçada de que os alunos precisam treinar a arte de expressar bem as suas idéias. Isso pelo fato dessa afirmação não ser verdade, mas parte de uma verdade maior.
É lógico que os alunos precisam treinar a arte de bem expressar as suas idéias, mas só depois de serem conduzidos pelo professor que, por sinal, é pago para fazer isso. A verdade inteira é que, quase sempre por motivos pessoais, o professor acaba transformando o que seria uma, de várias técnicas de ensino, em sua prática regular de ensino e o resultado é uma enorme massa de estudantes "transfigurados", da noite para o dia, em professores dos professores que deviam ensinar, mas não ensinam.
E o que dizer do dono da festa, o médico que estava "tirando plantão" e que,
ganhando o seu salário, reclamou de ser incomodado, apenas porque um senhor
de idade estava com suspeita de infarto? Somos tão convictos de que somos bons, que o médico chegou a dizer que, se ao menos o ancião tivesse sido diagnosticado por um profissional, então ele se sentiria na obrigação de ir atendê-lo. Ele só esqueceu de um detalhe: se o plantonista do hospital que, por sinal
era ele, estivesse cumprindo o seu plantão, o senhor de 64 anos de idade,
casado, pai de seis filhos, aposentado e que trabalhava desde os doze anos
de idade e contribuía com a previdência há trinta, talvez tivesse sido atendido por um profissional e não tivesse sofrido um derrame cerebral.
É interessante vermos, também, o caso da universitária, a defensora dos valores morais. E, aqui eu pergunto: que valores seriam esses? O famoso jeitinho brasileiro que, não custa lembrar, só virou instituição nacional, porque nós lhe damos vida com as nossas atitudes! Acredito que, mais uma vez, o Brasil passa por uma oportunidade de ouro para rever-se como país e sair crescido e melhorado de toda essa crise. O grande problema está nas pessoas. Em mim, em você, nas nossas famílias, colegas, amigos e inimigos, parentes e aderentes. Se quisermos realmente uma nação melhor temos que assumir que nós também somos recebedores do mensalão e que, portanto, cada um de nós também é merecedor de sentar nas cadeiras da CPI.
Recebemos o mensalão quando fazemos coisas como as descritas acima, e também quando copiamos ou compramos CD's piratas, quando pagamos propinas ao guarda de trânsito para ele não nos aplicar multa, enfim, todos nós, cada um a seu modo e com o seu preço, também é culpado, pessoalmente, por tudo isso que
está acontecendo no nosso país. É bom não esquecer que nossos políticos não vieram de Marte, mas do nosso meio, corrompidos por nós, corruptos e corruptores. O real motivo para a sociedade assistir apática a toda essa decadência não é apatia, mas cumplicidade.
Pedro Paulo Rodrigues Cardoso de Melo (Psicólogo Clínico, Psicopedagogo e
Professor Universitário de Psicologia e Sociologia).
Nenhum comentário:
Postar um comentário